Av. São João e o bonde Centex (foto de Carlheinz Hahmann) - 1948 - HTUB - WCS - pág. 457. Modelo mais recente a ser incorporado ao sistema de bondes paulistano; carros originários de Nova Iorque.
Os caminhos do bonde elétrico em São Paulo, da chegada, em 1900, à completa extinção nos anos 60 do século 20"Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam a morna cidade provinciana, iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na descida da ladeira Santo Amaro, frente à nossa casa, o bonde descer sozinho, equilibrado pelo breque do condutor. E o par de burros seguindo depois".
O autor desta descrição insólita do provérbio "colocar o carro na frente dos bois" é o escritor Oswald de Andrade, que em seu livro Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe (1954) relata o sentimento dos habitantes da capital da Província, um misto de saudosismo pela partida dos animais e expectativa pela chegada daqueles bondes que não precisariam mais deles. Continua Oswald com suas lembranças do final do século 19: "Uma febre de curiosidade tomou conta das famílias (...). Como seriam os novos bondes que andavam magicamente sem o impulso exterior? Eu tinha notícia, pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira da minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos, ficava ali grudado e seria fatalmente esmagado pelo bonde".
São Paulo, 1860. Quarenta anos antes da chegada do primeiro bonde elétrico, a hoje maior metrópole brasileira era, na época, um emaranhado de ruas de terra batida, tortuosas, cheias de pequenas casas de pau-a-pique. População: pouco mais de 20 mil habitantes. O movimento comercial era pequeno e nada de indústria. Os mais ricos moravam nas ruas do Rosário, Direita e São Bento, que formavam a área do triângulo paulistano. "Casas que parecem feitas depois do mundo, tanto são pretas; ruas que parecem feitas antes do mundo, tão desertas", constatou Castro Alves, poeta e então estudante de Direito.
Tudo era próximo. Para alcançar bairros distantes, como o Brás, Penha (a leste) ou Santo Amaro (ao sul), alugava-se um carro de bois. "Eram tão poucas as carruagens que os cidadãos acorriam às janelas para identificar o possuidor - de alguma que passasse", anotou Antonio de Paula Ramos Jr., formado em 1852 pela Academia de Direito do Largo de São Francisco.
Primeiros Bondes
A cidade crescia. Cinco anos depois, em 1865, surgia o primeiro sistema regular de transportes. No começo de agosto, o italiano Donato Severino publicou nos jornais o seguinte anúncio: "Progresso - O abaixo-assinado participa ao público que no dia 21 deste mês em diante tem carros e tílburis para aluguel, estacionados no Largo da Sé, onde podem ser procurados para qualquer serviço".
O avanço do café pelo Oeste Paulista traz riquezas para a então Província de São Paulo e, em 1867, inaugurava-se a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. "Percebo muitos melhoramentos", assinalou Hadfield, viajante inglês que visitara São Paulo em 1868. "A própria cidade, bem como as ruas, estão notavelmente limpas. As estradas, nas imediações, que eram anteriormente brejos, foram aterradas e estão agora em muito boa ordem".
Os primeiros bonds trafegaram pelas estreitas vias da garoenta paulicéia no dia 12 de outubro de 1872. Eram seis carros de cinco bancos, importados dos Estados Unidos, e solenemente denominados "diligências tiradas por animais". Eram também o que havia de mais moderno e rápido, se comparados aos carretões pesados e às carruagens que só serviam aos ricos proprietários e aos passageiros abonados. Rapidamente, o democrático sistema de transportes coletivos se expandiu, popularizando as áreas do centro e integrando as regiões distantes. Seges, landaus, aranhas, cabriolés, fiacres, vitórias, belinas, cupês, tílburis e animais de montaria foram aos poucos relegados como soluções particulares de transporte e acabaram expulsos da cidade. Até o alvorecer do século, os bondes-diligências e seus bíblicos muares satisfizeram as necessidades de movimentação dos paulistanos.
A Chegada da Light
A última década do século passado foi fundamental para São Paulo começar a perder seu caráter rural e ganhar contornos citadinos. À época, as transformações da economia paulista foram profundas: abolida a escravidão em 1888, as alternativas para os negócios tinham sido ampliadas, em detrimento dos investimentos feitos em mão-de-obra escrava ou mesmo nas ações das companhias de estradas de ferro. Surgem assim novos investimentos, industriais e imobiliários.
Em 1899, quando a The São Paulo Tramway, Light & Power Co. Ltd. se estabeleceu em São Paulo, seus dirigentes canadenses sabiam de sua importância como pólo desenvolvimentista. Em História da Light - Primeiros 50 anos, Edgard de Souza (primeiro brasileiro a chegar à alta direção da Light) anotou a seguinte observação de Auguste de Saint Hilaire, membro da Academia de Ciências do Instituto de França, que viajou por São Paulo em 1819: "O Brasil deve permanecer ainda como país simplesmente agrícola e não chegou a época em que lhe pode ser vantajoso estabelecer manufaturas; entretanto, quando for o momento para isso, é em São Paulo que tais empreendimentos devem ser iniciados". Os canadenses sabiam também que os serviços públicos eram deficientes. Neste ano de fundação da empresa, São Paulo já contava com cerca de 238.500 habitantes e a Light ganhava a concessão por quarenta anos para a construção, uso e gozo de linha de bondes por eletricidade na cidade de São Paulo e subúrbios.
Surgem os Elétricos
Os primeiros bondes elétricos trafegaram pela capital paulista em 7 de maio de 1900. Com a chegada deles, começa a história da Light para os paulistanos. Vontade de crescer, recursos técnicos e apoio financeiro não lhe faltaram. No ano seguinte, em 1901, a canadense já inaugurava a usina hidrelétrica de Parnaíba, condição essencial para a expansão dos serviços de bondes e para a distribuição farta de energia ao nascente parque industrial de São Paulo.
Nos anos 10 e 20, os bondes da Light já faziam parte do cotidiano da “cidade que mais cresce no mundo". A colisão de bondes com automóveis e atropelamentos de pedestre eram fatos corriqueiros. Em 4 de novembro de 1929, por exemplo, aconteceu um acidente inédito. De repente, um elefante vai em direção aos trilhos da linha da Vila Maria. O motorneiro, apreensivo, toca a campainha, mas o paquiderme nem se abala. Era Ely, de propriedade do Circo Pinheiros, que parecia querer medir forças com um camarão (bonde de cor vermelha) da Light. Acreditem: foi difícil dizer quem sofreu os maiores estragos. Ely - o elefante - foi nocauteado com uma forte pancada na cabeça e ficou desmaiado por quase duas horas. O camarão teve sua plataforma totalmente danificada. O acidente mereceu manchete em quase todos os jornais da época e serviu de mais um motivo para a imprensa criticar a imprudência dos condutores de bondes.
No Commercio Paulistano, no dia 6 de novembro de 1929, o cronista Hélios (pseudônimo do escritor Menotti Del Picchia) deu a sua versão: "Era fatal! Custou, mas afinal o Brasil ficou com esse record, de um cômico piolinesco. O elefante foi atropelado pelo bonde (...). Nem elefantes mais os motorneiros respeitam. Eu pensei que a cólera deles fosse apenas contra os homens, as carroças, os chaufeurs.
Outro artista, o cartunista Belmonte, também era um crítico mordaz dos bondes da Light. Por meio do seu personagem Juca Pato, Belmonte transpunha para as páginas da Folha da Manhã e da Folha da Noite os desabafos da população trabalhadora, inclusive das camadas médias que, na época, usavam os bondes da canadense como seu principal meio de transporte. "Por onde andam os bondes da Light?", perguntava Belmonte na Folha da Manhã, em 1926. "É um caso singular. Um cidadão em pleno triângulo (região central de São Paulo) fica às vezes a fazer-se essa pergunta desesperada".
Novas Conduções
Já nesta época, o transporte coletivo era um dos mais angustiantes problemas da cidade. Bondes e ônibus não conseguiam atender à população. São Paulo se expandia desordenadamente e a periferia não dispunha de condução para o centro. Mesmo assim, os novos bondes que saíam às ruas eram sempre bem recebidos. Logo ganhavam um apelido e a nova referência estabelecia uma relação de maior intimidade entre veículos e usuários.
Os mais antigos registros feitos em jornais e documentos da Light dão notícia da criação, em 1916, de "um serviço de segunda classe, oferecido pela metade da tarifa, nos bondes para operários". Esses bondes ficaram conhecidos como caradura, expressão popular que definia os passageiros com recursos para pagar a passagem integral, mas que, com a maior "caradura", preferiam a segunda classe.
Outro bastante lembrado é um bonde luxuosíssimo, pintado em azul e com o nome gravado em letras douradas, salão de buffet, gabinete e lavabo. Chamava-se Ypiranga. Encomendado pela Light à St. Louis Car Co. de Filadélfia, Estados Unidos, o bonde chegou ao porto de Santos em 22 de junho de 1906. A festa da primeira viagem lotou a rua da Fundição (Floriano Peixoto), largo da Sé e a ladeira do Carmo, onde também foram inauguradas novas linhas de tráfego. O Ypiranga, no entanto, só saía às ruas em dias festivos, quando transportava os dirigentes da canadense ou autoridades em visita oficial ao Estado como o presidente Affonso Penna (1906-1909), no mesmo ano de 1906. Mais tarde passou a servir apenas à diretoria da empresa, como carro privativo. Às sextas-feiras, levava o alto escalão da Light para passar o weekend, em Santo Amaro, retomando à cidade no domingo à noite. Depois, passou também a ser um carro de aluguel para o público, ou melhor, para uma restrita faixa de paulistanos que podia se dar ao luxo de, por uma boa quantia, realizar nele festas de batizado, noivado ou casamento.
Carros Diferentes
Mais tarde, em 1926, começaram a circular os bondes fechados, pesadões e pintados de vermelho. Por isso, foram batizados de camarão. Um outro bonde, ainda maior que o camarão, recebeu o apelido de tubarão, que alguns também chamavam de lagosta. E em meio aos peixes e crustáceos, surgiu ainda o jacaré, um bonde todo verde que fazia a linha para Santo Amaro.
E quem pode esquecer o Centex, mais conhecido por Gilda, o bonde que virou a cabeça dos paulistanos em 1947? Ele era o máximo em novidade. Os bancos eram móveis e revestidos de palhinha ou couro. Também não foi esquecida a segurança: o Centex estava equipado com espelhos retrovisores, limpador automático de pára-brisas e, nas janelas, vidros de têmpera especial. Seu espaço interno era maior e a visão para o exterior, quase panorâmica. Foi aí que alguém viu no bonde as formas sensuais da atriz Rita Hayworth, que, desde 1946, fazia furor com o filme Gilda. O bonde Gilda fez sucesso e até inspirou expressões da época. Era comum dizer que uma mulher bonita era "um verdadeiro bonde", assim como "estar de bonde" ou "andar de bonde" significava namorar. Em 1963, o Gilda mudou de cor, ganhou tonalidade alaranjada na carroceria e um amarelo mais claro nas portas. Desse jeito ficou mais parecido com um refrigerante da moda. E assim Gilda virou Crush, apelido que conservou até 1966, quando deixou de circular.
Poder da Canadense
A Light era poderosa e sabia multiplicar seus investimentos. Desde sua fundação, em 1899, a canadense se relacionou muito bem com influentes setores políticos. Rodrigues Alves, por exemplo, em seu período à frente do país (1902-1906), sempre prestigiou suas ações e novas obras. Da mesma forma, Carlos de Campos, presidente do Estado de São Paulo entre 1924 a 1927, deu grande força à tramitação dos projetos, inclusive atuando como advogado da empresa.
As linhas de bondes eram, por sinal, escolhidas mais pelo interesse econômico do que para "servir melhor a população": muito pouco para os bairros periféricos e tudo para as regiões que seriam ocupadas pelos endinheirados da indústria, do comércio e do café. Ou seja, as áreas próximas à avenida Paulista e os Jardins, loteados pela City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited. Explica-se: alguns conselheiros da Light faziam parte do Comitê Administrativo da Cia. City. A partir de 1915, os loteamentos da City seriam beneficiados rapidamente por serviços de infra-estrutura, em especial iluminação e bondes. E mais: já em 1910, a Light possuía terrenos em diversos pontos da cidade, além de áreas desapropriadas às margens dos rios Tietê e Pinheiros. Também aí a criação de novas linhas variava de região para região: num primeiro momento, a empresa assentava pequenos trechos de linha, criando uma demanda por imóveis e, claro, conseqüente valorização da área. Em seguida, completava a linha. Grande negócio: os terrenos adquiridos pela Light passavam a valer muito mais.
A Light, porém, nem sempre vencia todos os desafios. Desde a festiva inauguração do primeiro bonde elétrico, em 1900, um problema atormentava seus dirigentes: o preço das tarifas. A partir de 10 de maio de 1909, um decreto municipal havia unificado as tarifas e fixava o preço único de 200 réis. Em 1926, para reforçar as suas pretensões de revisão tarifária, a Light apresentou um ambicioso projeto de reformulação de transportes. E os itens principais do seu estudo compreendiam a aquisição de bondes em quantidade e qualidade adequada e a implantação de linhas em nível elevado e subterrâneo. Resumindo: era a primeira vez que se cogitava de um sistema de transporte de massa e, implicitamente, de um metrô.
Fim Melancólico
Lamentavelmente, para a cidade, o projeto não se concretizou. Frustrada em seus planos e sem ter obtido a revisão de tarifas, a Light direcionou todos os seus recursos e atenções para a geração e distribuição de energia elétrica nos 74 municípios de sua concessão exclusiva. Os transportes em bondes, que tinham sido até então o principal negócio da empresa e a razão de sua criação e de sua vinda para São Paulo, começaram a decair. A Light apenas cumpria tempo para chegar ao término do contrato, previsto para 1941.
Mas o mundo estava em guerra naquele ano. O comércio com o exterior estava paralisado e as suas dificuldades técnicas e financeiras se tornavam insuperáveis. Atendendo às ponderações do prefeito de São Paulo, o governo federal obrigou, por decreto, que a Light permanecesse em todas as suas atividades. Desta forma é que ela ainda prosseguiu até 18 de junho de 1947, quando foi instituído o monopólio dos transportes coletivos na capital. Para administrá-lo foi criada a CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos). A zero hora do dia 1º de julho daquele ano, a CMTC assumiu os serviços de bondes.
Na época, o patrimônio estava decadente e ultrapassado. As tarifas haviam permanecido inalteradas por 36 anos e os tempos já eram bem outros: os ônibus e os trolebus concorriam privilegiadamente com os bondes. Foram feitas algumas tentativas de recuperação das suas antigas qualidades. Novos veículos foram adquiridos, os serviços foram reformulados, o pessoal foi renovado, mas já era tarde. Na década de 60 teve início a sistemática extinção de linhas e os serviços foram ficando cada vez mais precários e deficientes. Era o fim de um transporte barato e não poluidor. Hoje, dos velhos bondes paulistanos só restam agora exemplares nos museus e suas imagens feitas, na maioria, por anônimos fotógrafos da Light.